(1/4) Contravento

As noites estavam a começar a encurtar. Os meus dias na terra do gelo também.

Nunca ia voltar a gostar tanto de café. Com abóbora, este. Uma ténue linha laranja balançava entre as margens brancas da caneca dando-lhe a vida que nunca reconheci ao café. Fi-lo rodar entre as paredes circulares e vi a espuma mudar de cor e ganhar corpo à medida que parava. Encostei os lábios à caneca, fechei os olhos e inspirei bem fundo. A massa dos bilharacos da minha Mãe, na véspera de Natal.

Bebi o último gole de café, enfiei o gorro, embrulhei-me no cachecol e vesti o casaco do Inverno mais frio da minha vida. Ainda não podia ir embora.

Resolvi ir a pé, para aproveitar aquelas paisagens uma última vez. Os resquícios de neve e verde, as pequenas flores de uma Primavera que nunca vem, aquela ameaça da Natureza nos surpreender a qualquer instante.

Apesar do frio, estava um dia bonito. Um dos mais bonitos desde que aqui cheguei, na verdade. Em 12 meses nunca tinha visto um céu assim. Nem nos meses de Verão.

Há quem não compreenda como é possível ficar tanto tempo numa ilha – 12 meses, 12 anos, uma vida. Eu também costumava não entender.

Num ano, nunca vi dois nasceres-do-sol iguais. Na verdade, houve até dias em que não o vi nascer de todo. Noutros, não o vi pôr-se. Aquele truque manhoso que o sol faz aqui no Verão. Vai descendo, descendo, descendo, quase até à linha do horizonte. E quando parece que vai embora, volta a subir maravilhosamente no céu.

Nunca vi a água da Gullfoss a cair duas vezes da mesma maneira, nem ouvi o seu fulgor cantar duas vezes o mesmo hino. Claro, é assim em todo o mundo. Mas, aqui, é ainda mais bonito, não me perguntem o porquê. Dali não conseguia ver a Gullfoss, mas, se fechasse os olhos e me concentrasse bastante, por entre o uivo gelado do vento, conseguia ouvi-la. Tirei o gorro para poder ouvir melhor: o uivo transformou-se em garras cortantes, mas conseguia ouvi-la sem dificuldade.

Fotografia: Bernardo Conde

(a foto aparecerá inteira no próximo excerto)

Próximo excerto

Em setembro de 2013, o Bernardo desafiou a malta, creio que no seu Facebook, a escrever histórias para uma série de fotografias que ele iria enviar, para depois compilar fotografias e respetivos textos num ebook, “Mundo de Nós”. Aderi ao desafio e o Bernardo enviou-me duas fotografias. Acabei por escrever apenas para uma – a que está neste post.
Foi por volta desta altura, setembro de 2013, quando estava em Cracóvia e começava a pensar para onde ir a seguir, que comecei a magicar a Islândia. Não me lembro se já tinha falado disto com o Bernardo e foi por isso que ele me enviou esta foto, ou se foi só uma daquelas magias que acontecem.
A verdade é que, recentemente, encontrei esta história (que aqui vou publicar em várias partes) e senti que a minha história de amor com a Islândia começou muito antes de lá chegar. Lembro-me de ter escrito outras partes da história enquanto lá estava – que tratarei de (tentar) terminar e publicar também aqui).
Ao texto original, apenas corrigi umas vírgulas. E alterei o título que acabou por ter no “Mundo de nós” – acho que, na altura, como sempre, sofria para arranjar títulos e devo ter enviado a história sem título ou com um título com o qual não me identifico de todo. Segue agora com novo título.
Sinto que este títulol, o que agora se apresenta, pode ser precário, temporário, e posso vir a sentir que outro serve melhor a história. Mas está tudo bem.

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